Depois de mais uma noite longe em que as caras atrás das cortinas, os olhos sinistros no canto do quarto, a mão embaixo da cama - tudo aquilo que os pais e a até o psicologo diziam ser fantasia da sua cabecinha -, não a deixram dormir direito, ela saiu para o pátio toda enrolada em casaco, capuz e cachecol.
Antes de entrar no carro do pai que a evaria para a escola, viu o passarinho no chão. Quieto. Deitado de lado. Inclinou-se e pego, acolheu-o debaixo do casaquinho de lã, soprou em seu bico tentando aquecê-lo. Era tão cálida a ternura que sentia, que naquele instante foi mãe da criaturinha adormecida e exposta ao frio. O pai segurava a porta do carro aberta, “entra de uma vez, menina, está um frio do cão aqui fora!”
-Olha, pai, ele está dormindo! Posso ficar pra mim? Posso botar na gaiola enrolado num pano para ele ficar quentinho, posso me atrasar um pouquinho para a escola, só desta vez? Depois a mamãe me leva?
O pai, atrasado para a reunião, não tinha vontade de brincar de faz-de-conta. Então disse, objetivo:
-Filha, o bixo está morto, bota isso fora!
A criança, apunhalada pela realidade, fugiu mais uma vez para a fantasia:
-Não é não, pai, ele está dormindo, estou sentindo o coração dele bater!
Era mentira, mas nem sempre a verdade era possível. Ficou ali parada, dura de obstinação, não deixava as lágrimas saltarem dos olhos, mãos congelando, firmada na sua teimosia de criança. Por algum tempo carrega o bichinho junto do peito, porém o calor é apenas seu, do seu amor, do seu desejo de dar vida e de ter alguma coisa inteiramente sua. Aquilo ela não teria de dividir com ninguém.
Finalmente o pai cede:
-Bom, então não bota fora, a gente enterra ele ali no canteiro, e eu explico pra su professora que hoje a gente se atrasou, paciência.
Para ela, era a escolha entre dois sofrimentos: aceitava que o bichinho estava morto, mas ao menos podia enterrá-lo no meio das flores. Foi o que fizeram. O pássaro foi ajeitado entre folhas e pétalas numa caixinha qualquer, arranjada às pressas, ela e o pai o enterraram num canteiro, abrindo um buraco com a pazinha de brinquedo que ela tinha esquecido por ali. O pai não escondia a irritação, “essa noite foi um pavor, seu irmão não deixou a gente dormir nada!”, mas tentou ajudar apesar da falta de jeito. A mãe, ocupada com o bebê, não se deu conta nem do atraso nem do pequeno ritual. Certamente ia reclamar, “larga esse bicho sujo, um bicho morto, que nojo!”
Antes de fechar a tampa da caixa, a menina ainda acariciou aquilo que não voaria mais, e entendeu, sem palavras entendeu: o peso dos ossinhos, a maciez das penas, o pobre bico para sempre fechado, não formavam um pássaro. Faltava-lhe, para ser pássaro, a curva do vôo. Quem o tinha desinventado, quem o tinha abandonado assim? A avó diria que tudo dependia de Deus.
Durante a manhã na escolinha não pensou em nada a não ser no pássaro embaixo da terra fria, e de ternura chorava disfarçando que era só um cisco no olho. Quando chegou em casa teve de ajudar a vigiar o bebê que dormia, enquanto a mãe fazia outros serviços na casa. A avó veio de visita, e foi preciso ficar com ela, ser bem-comportada, tomar café com bolo, e ouvir conselhos. Depois de todos esses deveres, no fim da tarde, a mãe outra vez ocupada com o bebê e o pai se despedindo para uma breve viagem de trabalho que ia durar alguns dias, ela subiu para um quartinho no último andar, uma mansarda, seu lugar de brinquedos. A única janela que dava para o jardim, as árvores, e o canteiro onde tinham enterrado o pequeno cadáver.
Apesar do vento gelado abriu a janela, subiu no peitoril, e, sem refletir, sem decidir, sem nenhuma dramaticidade ou sofrimento, abriu os braços bem esticados. Então, só com um pequeno “ai”, jogou-se no espaço, pronta para voar como aquele passarinho já não podia fazer. Seu longo cabelo castanho ainda se agitou numa lufada de vento, como uma asa frustrada. Depois se recolheu, e lhe cobriu inteiramente o rosto quando ela chegou no chão.
O pássaro - Lya Luft
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